quarta-feira, 2 de setembro de 2009

O reflexo no espelho


Aquele dezoito de julho seria especial...

Ela foi para a cama mais cedo no dia anterior, ansiosa com a chegada do novo dia.

E aquele dia nascera maravilhoso. A luz do sol invadiu o quarto, escorrendo pelas alvas cortinas da janela trazendo consigo a brisa fresca e o canto dos pássaros.

Acordou, mas os olhos semicerrados não lhe mostraram a luz do dia.

Estendeu no sentido transversal os seus braços, deu mais uma volta pela cama enrolando no lençol de cetim o corpo quente e seminu.

Queria se levantar, mas temia tornar efêmero aquele dia tão especial.

Como era corriqueiro, o lugar dele estava vazio, e o seu travesseiro de penas de ganso já estava frio, teria saído muito cedo. Levantou-se ainda carente da cama quente e começou a rotina diária.

Mas aquele dia era um dia especial...

A mesa estava posta para o café e como era costume ele não estava nela. De repente a porta se abre sutilmente e ele entra.

Com um pequeno volume envolvido em papel de presente, abraça-a e lho entrega. Mil coisas lhe vêm à mente... Seria um passaporte?

Não. Muito grande; um Notebook?

Não. Muito pequeno.

A ansiedade torturava, a curiosidade ardia... O que ele teria comprado de alto valor para um dia tão especial e de tão pequeno volume, capaz de caber na palma da mão? Seria uma jóia? Um colar de brilhantes, talvez... Mas parecia leve.

Com a voracidade de quem dilacera a presa, ela rasga o papel que envolve o misterioso presente e cai sentada perplexa sobre a poltrona.

É apenas um espelhinho daqueles que se encontra pendurado nas feiras livres, nas barracas de “capeta” ou em qualquer armarinho das pequenas cidades. A curiosidade e a ansiedade agora se reduzem a um simples riso improvisado e sem graça.

Ele entusiasmado pergunta:

--Você gostou meu amor?

Ela libera entre os dentes semicerrados um riso escorregadio e sem graça. Ele continua:

-- Veja meu amor, você está linda, mais uma manhã, mais um ano de vida.

Ontem às sete e meia, enquanto você dormia o sono dos inocentes, uma aeronave se chocou com um prédio, matando mais de duzentas pessoas e você não estava entre elas.

Este é um presente especial de Deus para você;

O seu reflexo no espelho é apenas uma prova disso.

Feliz aniversário meu amor!


Flávio Martins

domingo, 19 de julho de 2009

Poetas

A alma da gente flutua,
Nas ondas do dia a dia,
Com cada lágrima escondida,
Um pouco ela se esvazia!

Quem só canta as belezas da vida,
Não viveu, ou, teve a sorte,
De viver, da vida à morte,
Escondendo o que sofria!

Cantar o por do sol,
Apreciar as flores abertas,
É a sina destinada,
Aos condenados, poetas!

Edelweiss Marx e Silva

quarta-feira, 8 de julho de 2009

Civilização

O SOCIÓLOGO sorveu com vigor, duas, três vezes, o fumo do cigarro e, enquanto, durante meio minuto, o soprava de volta, foi dizendo:
- Há quem sustente, ainda hoje, que o homem provém do macaco. É possível. Porque estamos vendo agora o contrário, isto é, o homem regredindo ao macaco. A civilização progride sempre, mas não se confunda civilização com cultura, e esta tenho a impressão que vai para trás com o rádio, a televisão e a bomba atômica.
E como eu o olhasse incrédulo:
- Olhe, eu sou de uma cidadezinha do interior de Minas, onde vivi até os dezessete anos. No meu tempo, existiam lá duas bandas de amadores. Cada uma com vinte e cinco músicos. A rivalidade entre as duas era grande. Por isso, havia que ensaiar muito para não ficar atrás no favor do público, que estimulava uma e outra. Ensaiava-se todos os dias. Mal acabava o jantar, a rapaziada corria para a sede da charanga, e com ela ia muita gente, que, assim, passava as noites inocentemente, ouvindo dobrados sadios ou valsinhas do tipo dessas que Mignone, Camargo, Gaurnieri e Gnatalli têm estilizado. Havia também, teatro, igualmente de amadores. Ensaiavam, ensaiavam, e de vez em quando davam o seu espetáculo, a que concorria toda a gente do lugar. Havia dois clubes de futebol, que, à semelhança das charangas, dividiam as preferências do povo.
Passei trinta anos sem rever a minha cidadezinha. A semana trasada, tendo que ir a Diamantina, aproveitei a ocasião e fui rever os meus pagos... Que decepção! Ainda não há lá arranha-céus, mas há uns prédios de dois ou três andares imitando os arranha-céus de mau estilo do Rio e de São Paulo. Soube que as duas bandas de música tinham desaparecido. Não se fazia mais teatro. O futebol decaíra. O culpado de tudo isso, explicou-me o vigário, foi a civilização: foi o rádio, produto e instrumento dela. Em cada casa da minha cidadezinha natal, mesmo a mais pobre, há um rádio. As moças do lugar deixaram de se interessar pelas charangas de antigamente: só querem saber dos cantores e cantoras da bossa nova das rádios comerciais; os velhos e velhas acompanham com paixão as novelas radiofônicas ou televisionadas.
- E a rapaziada? - perguntei.
- A rapaziada vai para o bar e fica torcendo... pelo Vasco ou pelo Flamengo!

Manuel Bandeira

sexta-feira, 3 de julho de 2009

A Lógica Canção

Eu amo... Tu amas... Ele ama...

Teus olhos são duas sílabas
que me custam soletrar
teus lábios são dois vocábulos
que não posso interpretar.

Teus cabelos são gramáticas
das línguas todas do amor
teu coração tabernáculo
que pode me confundir.

Teu caprichoso espírito
inimigo do dever.
É um terrível enigma
ai! Que nunca posso entender!

Vera Lúcia Santana Rosa

quinta-feira, 2 de julho de 2009

BORDERLINE


meus olhos nos seus
equilibrisas espreitam o espírito do mundo
rosto sereno, quarto de desordens
o terraço aéreo, pontes e portas
eu pensamento em você
espreitando dublês-de-corpo
você desprezando seus pares
excessivamente ímpar
cheia de demônios familiares
e overdoses de histórias
eu junto a você, ouvindo sons circularem
por nossos mais íntimos circuitos
pudesse tocar delicado seu ombro sombrio
e segredar nonsenses
talvez escrevivesse rumores na pele
mais perto da febre de zarpar
que do prazer retorno


Sandro Ornellas

SOU OU NÃO SOU

Sou um vulcão de ideias
prensadas,
abafadas,
como lavas
prestes a entrar em erupção.

Sou uma camaleoa
camuflando,
sobrevivendo
a todo tipo de pressão.

Sou um palhaço
no picadeiro da vida.
Sou o choro abafado,
o riso debochado...

Sou ou não sou?
Eis a questão.


Maria Auxiliadora Silva de Araújo

Faça o teste, ouça e veja se você é bobo ou não.